Pensagens em um projeto
Cássia Aline Schuck1
Há um projeto de tese que pede passagem. Um projeto que se faz, desfaz, se refaz. Que é corpo de uma pesquisadora, de uma professora, de uma estudante, de uma umas. Organiza-se como um projeto-tatear2, uma produção com um pensamento atravessado na multiplicidade de e e e …, que experimenta expor seus conceitos e teorizações da forma menos claustrofóbica possível dos pensares.
Situa-se na matemática e na educação matemática e na visualidade e na imagem e na incerteza e no pensar e no aprender e e e … Engendra novos contornos para habitar e desenvolver uma pesquisa, uma produção de conhecimento.
Para este movimento foi necessário outrar, não pude evitar o deslocamento de especta-dor(a) para experimenta-dor(a). “A dor de outrar. […] Outrar vem então colocar em questão os discursos da identidade, que insistem em relegar à existência uma substancialidade previsível”3.
Emergem dessa dor provocações que envolvem e implicam os e e e …, bem como, pensagens, aquelas passagens-citações que me atentam a pensar.
Pensagem4 [1] “Ao ser tocada por aquele que vê, a imagem afeta o corpo de maneira intensa, levando-o a problematizar, questionar, enfim, a falar sobre verdades marcadas em formas de pensamento e, no caso que aqui discutimos, formas de pensar matematicamente”5
Pensagem [2] “– isto me olha”6
Pensagem [3] “A incerteza também é um projeto de conhecimento”7
Pensagem [4] “A imagem é um princípio dinâmico, uma potência do pensamento”8
Os conceitos de imagem, visualidade, pensamento matemático se atravessam e são fundantes desta pesquisa. Crary, pesquisador da cultura visual moderna, argumenta que “a visão e seus efeitos são inseparáveis das possibilidades de um sujeito observador, que é a um só tempo produto histórico e lugar de certas práticas, técnicas, instituições e procedimentos de subjetivação”9. Ou seja, estamos inscritos em um sistema de regras, convenções e restrições que formam o modo como olhamos, somos efeitos de relações discursivas e temporais e históricas e sociais e tecnológicas e políticas e institucionais e.
Deslocando-nos de abordagens convencionais em relação a imagem e história da arte e matemática, não desejamos focar em transformações na representação visual (considerando movimentos artísticos enquanto blocos limitados, fechados, datados) para compreender as mudanças de um sujeito, mas sim, compreendê-las [as transformações] como efeitos de reorganizações de saberes e poderes que se dão historicamente [e matematicamente], modificando as relações entre sujeito e imagem e sujeito e mundo e sujeito e conhecimento e.
“Benjamin dizia que a verdadeira história da arte não deve contar a história das imagens, e sim acessar o inconsciente da visão, algo que não se pode conseguir através do relato da crônica, senão por meio da montagem interpretativa”10. Tanto para Walter Benjamin, quanto para Didi-Huberman, “a imagem é uma forma específica de se pensar o tempo histórico-social”10. A imagens são “autenticamente históricas”, porque nos abrem ao passado da memória e ao presente da novidade, elas nos mostram o tempo. Um tempo descontínuo, que foge a linha reta de progressão e desenvolvimento, de relação de causa e consequência.
O índice histórico das imagens diz, pois, não apenas que elas pertencem a uma determinada época, mas sobretudo, que elas só se tornam legíveis numa determinada época. E atingir essa “legibilidade” constitui um determinado ponto crítico específico do movimento em seu interior. Todo presente é determinado por aquelas imagens que lhe são sincrônicas: cada agora é o agora de uma determinada cognoscibilidade. Nele, a verdade está carregada de tempo até o ponto de explodir. (Esta explosão, e nada mais, é a morte da intentio, que coincide com o nascimento do tempo histórico autêntico, o tempo da verdade)11.
A imagem, assim, forma sua própria temporalidade, não serve ou não se ajusta a ideia de pontos sobre uma linha reta temporal, mas “abre o tempo”, faz chocar e se esparramar todos os tempos. Ver uma imagem é, portanto, muito mais que uma experiência visual ou ato físico do olho datado. Trata-se de uma relação complexa entre aquele que olha e aquilo que é olhado, não necessitamos escolher entre o que vemos e o que nos olha, há apenas que se inquietar com o entre6. A imagem, desta forma, espera nosso olhar, contudo nunca é ofertada apenas ao nosso olhar, pois também se dirige ao nosso conhecimento, força o pensar e torna possível ler a mentalidade de uma época.
Nesta pesquisa, dentre a multiplicidade de imagens que se colocam, escolhemos as das Artes Visuais, por seu poder singular de nos afetar e provocar pensamentos matemáticos. Não tratando-as como “representação”, nem “coisa”, mas compreendendo-a como sendo algo mais que aquilo que ela mostra, algo que extrapola qualquer conteúdo visível. Pensaremos a imagem, principalmente, como aquilo que os sujeitos veem ao estabelecerem relações com ela e que, ao mesmo tempo, é capaz de inquietar, provocar o pensamento. Desta forma, estas imagens se estendem para além de sua visibilidade, pois inquietam nossa visão, violentando-nos e fazendo-nos, assim, sentir e pensar.
E com pensagens sigo tateando…
Referências
1Professora de Matemática do Instituto Federal Catarinense. Doutoranda em Educação Científica e Tecnológica pela Universidade Federal de Santa Catarina.
2Tateia porque cauteloso, porque refreado. “Quando se apaga a luz das certezas prontas e bem-delineadas, tatear implica uma performatividade que transite entre, de um lado, reiterar uma grade em que “eu”, “você” e todo um corpo social permaneçam sãos e salvos do risco de se transformar e, por outro lado, explorar a potencialidade de novos mundos ínfimos e transitórios que se esboçam em cada encontro.” (TONELI, et al, 2012, p. 228)12.
3SIMONI, A; MOSCHEN, S. Outrar. In: FONSECA, Tania; NASCIMENTO, Maria; MARASCHIN, Cleci (Orgs.). Pesquisar na diferença: um abecedário. Porto Alegre: Sulina, 2012.
4Pensagens é o engendramento de pensar [com Deleuze] e passagens [com Benjamin].
5FLORES, Claudia R.. Descaminhos: potencialidades da Arte com a Educação Matemática. BOLEMA : Boletim de Educação Matemática (Online), v. 30, p. 502-514, 2016.
6DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: 34, 1998.
7DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da Imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2013.
8PIRES, Eloiza. Experiência e linguagem em Walter Benjamin. Educ. Pesqui. São Paulo, vol.40, n° 3, pp. 813-828. Jul./set. 2014. DOI: 10.1590/s1517-97022014041524.
9CRARY, Jonathan. Técnicas do observador: Visão e modernidade no século XIX. Tradução de Verrah Chamma. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.
10TAVARES, Marcela. O(s) Tempo(s) da Imagem: uma investigação sobre o estatuto temporal da imagem a partir da obra de Didi-Huberman. 2012. 114 p. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós- Graduação em Estética e Filosofia da Arte. Universidade Federal de Ouro Preto, Minas Gerais, 2012.
11BENJAMIN, Walter. Passagens. Tradução e coordenação de Willy Bolle. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado/ UFMG, 2009.
12TONELI, Maria; ADRIÃO, Karla; CABRAL, Arthur. Tatear. In: FONSECA, Tania; NASCIMENTO, Maria; MARASCHIN, Cleci (Orgs.). Pesquisar na diferença: um abecedário. Porto Alegre: Sulina, 2012.