Na dança de “remembranças”: um convite
Mônica Maria Kerscher –
monicakerscher@gmail.com
Há algum tempo atrás ouvi uma história1 – ou a li, nem me lembro mais ao certo – sobre as peripécias de um homem baixo e rechonchudo, Sancho Pança. Por que não começar com ela? Remembranças se atiçam e lembranças dançam nesta escrita.
Certa vez Sancho Pança foi ao cinema de uma cidade do interior. Numa sala quase cheia com crianças animadas, jovens e adultos. Dom Quixote, seu amigo, já estava lá sentado sozinho, isolado, e olhando fixamente para o telão a espera de o filme começar. Sancho Pança após algumas tentativas de se aproximar de Dom Quixote desiste, sentando-se com desagrado em outro lugar na plateia. O filme começa, era um filme de época, daqueles que o cavaleiro armado salva a mocinha que está nas mãos do vilão malvado. Alguns tiros, algumas fugas e, então, a mocinha é posta em perigo. De repente, Dom Quixote, sem hesitar, fica em pé num pulo só, apanha sua espada contra o telão e ‘luta com o vilão’, rasga o tecido até que as cenas se desfazem nas aberturas feitas por sua espada. A tela do cinema se transforma em retalhos. Todos vão embora, indignados! Não há mais nada para ver ali. Menos para as crianças! Elas continuaram lá, elas veem muitas coisas, encorajam o herói, ficam abertas para a euforia, para o novo, são atravessadas pela imaginação, pelo inesperado, pelo inusitado. As crianças são curiosas, experimentam e deixam-se afetar pelo acontecimento, se incitam com a novidade, com o momento. Estão expostas e dispostas para todos os contatos, a todos os encontros, são sensíveis as vibrações, se envolvem com o prazer da fantasia, da brincadeira.
Pois bem, me passa, nesse momento, que podemos ser, também, crianças que assistem filme com Dom Quixote. Podemos ser criança de domingo2. Que possamos nos permitir despertar o olhar adormecido para pensar o que vemos com a novidade, e não ver o que pensamos com o já visto, com o já pensado, com o já notado, com o já cristalizado. Que permitamos nos colocar em ex-posição na experiência com aquilo que nos toca, nos passa, nos acontece no aqui e agora. Que nos permitamos experiência-de-tonteira! Quando pequena eu rodava, rodava e rodava em torno de mim mesma até ficar tonta e cair. Cair não era bom mas a tonteira era deliciosa. Ficar tonta era o meu vício. Adulta eu rodo mas quando fico tonta aproveito de seus poucos instantes para voar3.
Confesso que já me permiti tonteira, fui criança de domingo e assisti filme com Dom Quixote… Voei! E foi incrível! Não consegui parar (nem quis!).
Certa vez voei com uma pesquisa labiríntica. Uma com-posição que experimentou pensar um modo de educação matemática no entre da martemática com crianças, em meio a oficinas e matemática e arte abstrata geométrica e imagens e experiência e pensamento e visualidade e… e… e… Nessa experimentação me senti atraída pelas passagens, pelas afetações dos encontros, criei conexões, transformei os retalhos rasgados da tela do cinema em potência para pensar no entre. Fui atravessada por martemáticas de experiências que vibraram nas abstrações do pensamento e no pensamento abstrato, na matemática, na arte, na educação (…) e no próprio mundo que se compõe com visualidades, com modos de olhar, pensar e falar. Agenciei (sem-)sentidos. Um – entre tantos – (sem-)sentindo. Um sentido singular. Um sentido que possibilitou o pensar, que afetou (e pode ainda afetar), impulsionou e movimentou palavras e imagens no papel, na imaginação, com experiência abstrata.
Ah! Lembrei-me, ainda, de mais um trecho de algo que escrevi com aquela tonteira do rodopio. Remexi palavras e fiz uma composição de falas de criança e de poesia de Drummond de Andrade:
No meio da aula tinha uma conversa
Tinha uma conversa no meio da aula
Tinha uma conversa
No meio da aula tinha uma conversa
Entre pedras e conversas: conversas. Várias conversas.
Nas ‘bagunças’ da sala de aula um chacoalhão de palavras de criança.
– O adulto faz silêncio, mas não aprende4.
Na dança dessas remembranças, deixo aqui um convite… Um convite para experimentar bagunças de crianças e para fazer bagunça no entre da matemática e da arte abstrata geométrica, com uma experiência de se movimentar por um labirinto rizomático de uma dissertação de mestrado intitulada “Uma martemática que per-corre com crianças em uma experiência abstrata num espaço-escola-espaço”, que brincou de fazer pesquisa, de pensar uma educação matemática, de mexer com as palavras, de perambular por corredores, salas, bifurcações, passagens, compostagens, rasguras, travessias, potencializando o movimento do pensar. Um convite para encarar experiências que ecoam e se misturam nas des-explicações dos (sem-)sentidos, nas (des)organizações do espaço e do tempo, com a própria vida.
1 Essa história se encontra com palavras a mais ou a menos, com outras palavras, no capítulo denominado “Os seis minutos mais belos da história do cinema” do livro Profanações de Giorgio Agamben (2007), p. 81-82.
2 Clarice Lispector. Um sopro de vida. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 51.
3 Clarice Lispector. Um sopro de vida. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 57.
4 Mônica Maria Kerscher, Uma martemática que per-corre com crianças em uma experiência abstrata num espaço-escola-espaço. 192 f. Dissertação (Mestrado em Educação Científica e Tecnológica) – Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2018, p. 113.